Voltar ao santo Gasómetro

27/04/2011 at 11:00 42 comentários

Por catorze anos, de 1979 a 1993, os torcedores do San Lorenzo vagaram sem rumo pelas canchas de Buenos Aires. Durante mais de uma década, o clube foi visitante em todas as partidas que disputou. Mandava os seus jogos no Palacio Ducó, no José Amalfitani, no estádio do Atlanta, em Villa Crespo, e no Monumental de Núñez, em tardes de grande assistência. Mudava o bairro, a arquibancada e a casa – uma geração inteira de peregrinos seguiu o San Lorenzo por todos esses anos sem ter um estádio para dizer seu, sem um palco para guardar os trapos e pintar as tribunas de azul e grená. Tudo porque a pressão da ditadura militar, que encontrou eco na diretoria do clube, forçou a venda do Viejo Gasómetro no final dos anos 70. Foi quando o Ciclón deixou Boedo para não voltar mais.

A perda do estádio foi o desfecho infame de uns anos que pareciam dourados. Porque no final dos anos sessenta e no início dos setenta, o Cuervo emendou temporadas que talvez sejam as melhores da sua história. Foram quatro títulos nacionais entre 1968 e 1974 e infinitos tentos do atacante Héctor Scotta, o grande goleador daquele tempo. O que poderia ser um impulso para a consolidação da equipe como a grande instituição esportiva de Buenos Aires esbarrou em más gestões internas e num acontecimento político: a ditadura que iniciaria em 1976 pôs os olhos nos valorizados terrenos de Boedo e teve o San Lorenzo como alvo – não houve clube mais prejudicado pelos militares no país.

Em 1979, a diretoria de um clube endividado e que se perdeu nos conceitos modernistas daquele tempo – “não faz sentido manter um estádio com uma estrutura tão antiga”, disseram os cartolas – negociou com o governo de Buenos Aires a venda do Viejo Gasómetro. Os militares garantiam que a área era necessária para a chamada “reorganização urbana” da cidade e que não se tratava de uma negociação do terreno com alguma empresa interessada. A torcida se dirigiu pela última vez ao velho palco no dia dois de dezembro de 79. O adversário era o Boca Juniors e mais de setenta e cinco mil presentes – a capacidade do enorme estádio – assistiram à última exibição. Foi um 0-0 melancólico como qualquer despedida definitiva. Conta-se que muitos levaram para casa pedaços de telas, arames e do aço que sustentava o Gasómetro, imortalizando o seu pedaço próprio de recuerdo.

Até José Sanfilippo, o maior goleador da história do clube e que já havia encerrado a carreira, levou para casa parte da madeira das arquibancadas. Mas de nômade a rebaixado foi uma questão de poucos anos. Na primeira temporada longe de Boedo o San Lorenzo já esteve muito perto do descenso – que chegou no ano seguinte, 1981, na primeira queda entre os cinco grandes clubes argentinos. Como costuma acontecer com qualquer multidão apaixonada, o panorama crítico acabou por potencializar a paixão. Na segunda divisão, devendo para meio mundo, perseguido pelos milicos e sem ter uma cancha própria para mandar as suas partidas, o San Lorenzo registrou dados imbatíveis de público até hoje. Chegou a vender sozinho mais entradas do que todos os times da primeira divisão no mesmo final de semana.

Apenas em 1993, catorze anos depois, ergueu-se um novo estádio. Em outra área, chamada de Bajo Flores, ao sul do bairro de Flores e razoavelmente perto do Tomás Adolfo Ducó, do Huracán. No Nuevo Gasómetro, o San Lorenzo chegou a ser três vezes campeão nacional e festejar a Sul-Americana e a Mercosul, mas a torcida jamais se adaptou. A média de público não é a mesma dos tempos do outro Gasómetro, o que, é certo, pode passar por outros fatores do futebol moderno. O maior problema, no entanto, foi o fim da identificação com o bairro. Em Boedo havia uma vida social e esportiva que perdurou por muitas décadas. Lá o Cuervo era referência no futebol, no basquete, no atletismo e no boxe; juntava multidões no carnaval e representava em campo os habitantes daquela região.

Os adeptos da “volta a Boedo” existem desde a mudança. Queixam-se da insegurança de Bajo Flores e apontam dados sobre o afastamento dos moradores do antigo bairro da vida do clube. Com a redemocratização, parlamentares simpáticos à causa buscaram meios legais para reaver os terrenos na Avenida La Plata – no lugar do velho estádio, hoje se encontra um supermercado Carrefour. Da antiga área, uma parte pequena já voltou ao comando da entidade através da Lei de Restituição Histórica, que corrige parte dos prejuízos urbanos da época da repressão. Houve uma procissão pela Avenida no início deste abril – os torcedores pressionam agora o governo para viabilizar três possíveis projetos. Há planos para ampliar a sede social no bairro, construir um pequeno complexo esportivo e até para levantar um novo estádio na região. Em troca, a prefeitura se utilizaria dos terrenos em Flores.

É incrível que grande parte dos torcedores presentes nos protestos seja justamente da geração de andarilhos que por muito tempo sofreu por um time sem estádio em Buenos Aires. Do Gasómetro, muitos só ouviram falar – das histórias de família, dos antigos postais, das crônicas de títulos de antanho. Boedo é a terra santa para a qual é preciso voltar, mesmo quarenta anos depois. O San Lorenzo não se resignou com Bajo Flores e promete lutar para que o seu passado saia das gôndolas do Carrefour. Vale, então, o relato do escritor Osvaldo Soriano, que conta ter estado no supermercado com José Sanfilippo há anos atrás. Correndo entre as mercadorias, o centroavante havia demonstrado como marcou um gol contra o Boca Juniors em um dos arcos do Viejo Gasómetro:

“A bola caiu atrás dos zagueiros centrais, atropelei, mas ela foi um pouco para lá, ali onde está o arroz, viu só? (…). “Deixei-a quicar, e plum!”. Dispara com a esquerda. Nos viramos todos para olhar na direção do caixa, onde há trinta e tantos anos estava o gol, e parece a todos nós que a bola entra por cima, justamente onde estão as pilhas para rádio e as lâminas de barbear. Sanfilippo levanta os braços para festejar. Os fregueses e funcionários quase arrebentam as mãos de tanto aplaudir. Quase comecei a chorar. O “Nene” Sanfilippo tinha feito de novo aquele gol de 1962, só para que eu pudesse vê-lo.” Para muitos, hoje os resultados do futebol profissional valem menos do que a causa aqui tratada. É como um grande desencontro: o sentido só voltaria no mesmo lugar onde tudo aconteceu.

Saludos,
Iuri Müller

Entry filed under: Clubes, Pela América.

Uma Católica fogosa passeando na Azenha Voltando por cima, e subindo

42 Comentários Add your own

  • 1. Guto  |  27/04/2011 às 11:07

    Épico, simplesmente épico.

  • 2. Sancho  |  27/04/2011 às 11:09

    Eu já tinha lido a descrição do gol no super, mas desconhecia o porquê da venda do estádio. O problema de todos os textos do Iuri é que ele resume UM LIVRO nalguns parágrafos. SEMPRE fico com vontade de saber mais detalhes…

  • 3. Gabriel Teixeira  |  27/04/2011 às 11:09

    FORA IMPERIALISTAS FRANCESES!! (ns)

    Iuri, tu tá te tornando um monstro em contar essas histórias. Parabéns.

  • 4. Cassol  |  27/04/2011 às 11:19

    Bah.

  • 5. Norteña  |  27/04/2011 às 11:23

    Baita texto…

    Cada vez mais me desiludo com o futebol moderno. Acho que nasci na época errada.

  • 6. col  |  27/04/2011 às 11:32

    clap clap

  • 7. Alexandre de Santi  |  27/04/2011 às 12:04

    Putamerda, o parágrafo final me arrebentou.

  • 8. Ernesto  |  27/04/2011 às 12:40

    Sanfilippo mito, virou comentarista de Tv. O típico comentarista de resultado, hahsahsahsahas. Tem vários vídeos dele no youtube, principalmente destruindo o Maradona.

  • 9. Francisco Luz  |  27/04/2011 às 12:40

    No comments.

  • 10. Diogo  |  27/04/2011 às 12:46

    O San Lorenzo pode ser motivo de chacota dos demais grandes por nunca ter ganho Libertadores, mas em termos de mobilização da torcida, é invejado. Vale lembrar que a ISL (recebida com toda a pompa aqui no Grêmio, por torcida e imprensa, para anos depois raspar os cofres tricolores), foi escorraçada pela massa cuerva e desistiu de “investir” no clube.

    Na Argentina a roubalheira no futebol é tão ou mais obscena que aqui (Macri, Grondona, Aguilar, etc.), mas lá, pelo menos, os caras se mobilizam contra os pilantras. Aqui, basta comprar a imprensa, posar de festeiro que a boiada vai atrás.

  • 11. Ismael  |  27/04/2011 às 12:51

    Bah, que coisa fantástica!

  • 12. Ducker  |  27/04/2011 às 13:16

    Esse Iuri é um ET.

  • 13. Vinicius  |  27/04/2011 às 13:30

    Afuzel!

    bacana o texto, não lembro onde li esta história do gol dentro super, foi em outro lugar.

    San Lorenzo, o Atlético Mineiro de Buenos Aires.

  • 14. Godo  |  27/04/2011 às 13:37

    Iuri, tu tá te tornando um monstro em contar essas histórias. Parabéns. [2]

  • 15. gilson  |  27/04/2011 às 13:38

    Do caralho sô, AGUANTE CICLÓN sempre e sempre!!!!

  • 16. rafael botafoguense  |  27/04/2011 às 13:48

    cenário bem parecido com o do falecido estádio general severiano: fim dos anos 70, dívidas e dirigentes imbecis. botafogo tendo que se mudar pra outro bairro (marechal hermes) pra só voltar em 94.

    só que o do botafogo virou shopping.

  • 17. Vinicius  |  27/04/2011 às 14:31

    ASSUNTO INCONTIDO:

    Amanhã terá a invasão charrua colorada em Montevideo.
    4 mil estarão lá.
    Paletearemos o General Artigas até Porto Alegre e faremos miséria na Praça Cagancha.

    Aguardemmmmmmm (Sílvio Santos)

  • 18. jp  |  27/04/2011 às 15:24

    “…No Nuevo Gasómetro, o San Lorenzo chegou a ser três vezes campeão nacional e festejar a Sul-Americana e a Mercosul, mas a torcida jamais se adaptou. A média de público não é a mesma dos tempos do outro Gasómetro, o que, é certo, pode passar por outros fatores do futebol moderno. O maior problema, no entanto, foi o fim da identificação com o bairro. Em Boedo havia uma vida social e esportiva que perdurou por muitas décadas. Lá o Cuervo era referência no futebol, no basquete, no atletismo e no boxe; juntava multidões no carnaval e representava em campo os habitantes daquela região.”

    ME INQUIETA SE ISSO NÃO PODE ACONTECER À TORCIDA GREMISTA, QUANDO DA MUDANÇA PARA A ARENA NO HUMAITÁ… o que acham?

  • 19. Juan Carlos "Chango" Cardenas  |  27/04/2011 às 15:29

    Bah, o paragrafo final me matou che
    Fantástico…

  • 20. Tiago Marcon  |  27/04/2011 às 15:43

    sem palavras
    e o desfecho do texto, sublime

  • 21. Juan Carlos "Chango" Cardenas  |  27/04/2011 às 15:43

    #18 Bah cara, acho que nao é uma comparação oportuna. O CASLA se mudou por motivos “obscuros”, ja a arena vem junto com um projeto de “modernização”. E outra, na argentina o pessoal tem uma grande identificação com os bairros, o que nao ocorre tao fortemente aqui.

  • 22. jp  |  27/04/2011 às 15:55

    Faz sentido, Chango… Foi apenas algo que me ocorreu, embora cônscio que se tratam de situações distintas.

  • 23. Cunegundes Gullar  |  27/04/2011 às 16:00

    uma mulher que dá o cu é uma democrata que permite ousarmos no deslinde de nossas atividades promíscuas

  • 24. Roger  |  27/04/2011 às 16:25

    #18

    Tbém acho que a identificação com o bairro é praticamente inexistente aqui.
    Serve apenas como uma referência, o time da Azenha(Humaitá), o time da Padre cacique…

    Além dessa, tem outra igualmente importante: não vamos ficar nenhum dia sem estádio!(pelo menos é o que eu espero, mas na fase atual de incompetência da dirigência tricolor tbem não duvido…)

    E sobre o texto, já desisti de elogiar o Iuri.

    Aliás, Iuri, me mudei recentemente pra Santa Maria. Ainda vives por aqui?

  • 25. Cicero  |  27/04/2011 às 16:40

    Cunegundes VIVE.

    Iuri IDOLO.

  • 26. Paulo Torres  |  27/04/2011 às 17:22

    Em Buenos Aires os times são identificados com os bairros, mas vários pela história já mudaram de vizinhança. O Platense saiu de Saavedra e foi para o vizinho município de Vicente López, o Almagro trocou Almagro (vizinho a Boedo) por uma outra cidade vizinha, o San Telmo há muito tem sua cancha na Isla Maciel mas não pode jogar lá, mesmo o Independiente foi fundado no centro de Buenos Aires e por lá jogou por uns poucoa anos antes de se instalar do outro lado do Riachuelo. Acontece.

  • 27. Frank  |  27/04/2011 às 17:50

    Essa história de times de bairro em Buenos Aires (e em Montevidéu) é bem interessante… não sabia de tudo isso envolvendo a saída do San Lorenzo de Boedo… Milicos de merda. Além de tudo o que fizeram de deletério para a evolução política do país (e da América Latina), ainda sacanearam com a paixão dos torcedores azulgrana…

  • 28. arbo  |  27/04/2011 às 18:07

  • 29. Junior  |  27/04/2011 às 18:14

    bacana o texto, não lembro onde li esta história do gol dentro super, foi em outro lugar.

    O Eduardo Galeano reproduz essa história no seu livro “Futebol ao Sol e à Sombra”.
    O Galeano aumenta um pouco algumas histórias, o que é típico dele (isso não é uma crítica, bem pelo contrário, é um elogio de um fã), o que pode afastar alguém que goste de textos 100% realistas, mas é um livro que todo ser humano que ama futebol tem a OBRIGAÇÃO de ler.

  • 30. Junior  |  27/04/2011 às 18:16

    O começo do meu post 29 é de um outro leitor, esqueci de colocar as aspas.

  • 31. Marimon  |  27/04/2011 às 23:19

    Bah²

  • 32. Iuri  |  28/04/2011 às 00:08

    #2
    Sancho, de fato o presente do San Lorenzo rende um livro. E parece até que já tem: ou ao menos li algo sobre isso numa página de torcedores do clube. Há um grupo bastante grande envolvido apenas na meta de voltar a Boedo.

    #24
    Roger, ainda vivo em Santa Maria, sim. Veio fazer o que por aqui? Um abraço!

    #26
    Paulo, considero a situação do San Lorenzo muito mais grave por ser um episódio moderno e pelo fato deles terem ficado mais de uma década sem ter onde jogar. Não foi uma mudança planejada. A do Independiente, por exemplo, é muito antiga. Abraço.

  • 33. Kadu  |  28/04/2011 às 00:18

    Sensacional

  • 34. douglasceconello  |  28/04/2011 às 01:41

    Que coisas sensacionais, o Iuri e a torcida do Ciclón.

    Aliás, me chamou a atenção em Buenos Aires a quantidade de taxistas que torce para o San Lorenzo. Tou com preguiça de confirmar agora, mas dois deles se GABARAM de o Ciclón ser o único time argentino a levar vantagem em confronto direto com o Boca.

    Também nutro certa empatia. E torço para o dia em que vencerão a Libertadores.

  • 35. Francisco Luz  |  28/04/2011 às 02:05

    Eu já falei isso um dia: todo taxista em Buenos Aires é corbo.

    De boa, das vezes em que eu me lembro de ter ido para lá e pego táxis – três desde 2002 -, só um não era do ciclón, racinguista.

    Fenômeno das massas.

  • 36. Gabriel  |  28/04/2011 às 08:48

    E o Grêmio indo para o HUMAITÁ

  • 37. Carlos  |  28/04/2011 às 09:46

    Sensacional.

    Entretanto, contudo, porém, me incomoda um pouco essa coisa argentina de viver do passado, passado e + passado.

    É evita, é Gardel, é voltar ao velho estádio….isso tudo só fode com o povo argentino.

  • 38. Sancho  |  28/04/2011 às 10:56

    Só eu peguei um taxista torcedor do Huracán, eu acho…

  • 39. arbo  |  28/04/2011 às 13:39

    sancho pegador, furacão das massas

    [2ª série]

  • 40. Gerhardt  |  28/04/2011 às 17:43

    textaço. muito massa essa ficção real.

  • 41. Roger  |  28/04/2011 às 17:48

    #32
    Iuri, vim transferido, a trabalho. Estou fixando residencia na boca do monte. Vamos tomar umas cevas e bater um papo qualquer dia desses. Manda um e-mail aí.

    #35
    Parece que todas as pesquisas apontam o ciclon como a 3ª maior torcida da Argentina correto? Como Boca e River são bem maiores em nível nacional, em BAires deve ser meio parelha a torcida dos três.

  • 42. iurimuller  |  28/04/2011 às 18:45

    iuri.muller@gmail.com

    Salu2.

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