Confesso que sequei – o Corinthians

Vida de torcedor no “eixo” não é moleza. Além de ser sempre acusado pelo resto do País de contar com a ajuda da arbitragem, é preciso se desdobrar para exercer a contento a sublime arte da secação. Na década de 80, por exemplo, a cada uma das incontáveis decisões entre Corinthians e São Paulo, o pobre palmeirense, além de sofrer com a fila cada vez maior, ficava sem saber qual dos dois rivais secar. Restava sempre, é claro, a torcida por um teste nuclear norte-coreano nos arredores do Jardim Leonor*, ou pela segunda vinda de Cristo, mas no fim acabávamos com a dor de ver um dos rivais fazendo a festa.

A mesma dúvida me consumiu ao pensar em qual dos dois abordaria nesta série impedimentística, visto que coleciono um bom CURRÍCULO tanto na secação de tricolores quanto na de alvinegros**. Mas, após breve debate com o Douglas, concluí que de fato seria o Corinthians o merecedor de tal honra. Porque esse é e sempre será o grande clássico do futebol paulista. O São Paulo pode ganhar quantos títulos mundiais quiser; para nós ele será eternamente a terceira força da cidade.

E secar o Corinthians é sempre bom porque eles são em geral insuportáveis na hora de comemorar. Não bastasse serem os mais numerosos, eles têm a mania de se achar os mais apaixonados, os mais sofridos, os mais lutadores, os mais raçudos e por aí vai, o que só torna mais irritante ter de aturar suas conquistas.

Isso posto, vamos à lista das cinco maiores secadas sobre o rival, por ordem de importância:

5 – Guarani 0 x 1 Corinthians – 31/07/1988 – final do Paulistão

O menor vídeo do YouTube.

Eu tinha 10 anos e minha família tinha acabado de se mudar de volta para Sorocaba, depois de seis anos na vizinha Salto. Num sábado, enquanto meus pais terminavam de ajeitar a mudança, saí para a rua, que tinha apenas um quarteirão de extensåo, e vi uma turminha jogando bobinho. Tímido e ruim de bola, tentei me esquivar, mas minha avó fez o favor de me introduzir à turma. Conversa vai, conversa vem, entre uma bola por baixo das pernas e outra descobri que três dos garotos eram irmãos, todos corintianos, assim como o outro moleque na roda.

Até aí nada demais, eu sempre cresci acostumado a ser um dos poucos palmeirenses da classe, senão o único (quem disse que os anos 80 deixaram saudade devia torcer pra outro time), mas o problema é que no dia seguinte teria a final do Paulistão, na qual o Corinthians só estava graças ao Palmeiras, que havia vencido o São Paulo por 1 a 0 na última rodada da fase anterior.

Nos meus 10 anos de vida até então, nunca tinha torcido tanto por outro time que não fosse o Palmeiras, ajudado pelo fato de o Guarani usar verde. Mas não adiantou: com um gol de VIOLA, após um chute torto de WILSON MANO, o Corinthians levou a melhor e eu tive de aturar a festa dos vizinhos em meu segundo dia de casa nova.

4 – Internacional 2 x 2 Corinthians – 01/07/2009 – final da Copa do Brasil

Ensaiando a prática do cancã

Eu tentei, meus amigos colorados, eu juro que tentei. A ponto de calcular mentalmente, no início do segundo tempo, que o Inter conseguiria ficar com o caneco se marcasse um gol a cada nove minutos. De vibrar silenciosamente com os dois gols em poucos minutos, que me deram um mínimo de esperança. E de vociferar cochichando (pois Dona Camila estava dormindo, cansada por carregar o bravo Davi em seu ventre) com a cretina expulsão e o cirquinho armado por D’Alessandro. Fui dormir irritado ao som de incontáveis rojões, que continuaram ecoando por no mínimo uns 20 minutos após a partida.

Resta-me agora torcer para que o Palmeiras chegue à Libertadores de 2010 para despachá-los de novo – e de preferência nos pênaltis, com requintes excessivos de crueldade.

3 – Copa do Brasil de 2008 – vários jogos

Comeu a uva, engasgou com a bala

Minha avó morreu em 30 de abril do ano passado, dois meses antes de completar 89 anos e após um desgastante período de UTI. E foi um péssimo dia também no campo futebolístico: na mal sintonizada TV da funerária vimos o Palmeiras levar um sarrafo do Sport e o Corinthians sovar o Goiás com quatro CHIBATADAS NO LOMBO. (E, ali perto, no estádio local cujos gritos se ouviam claramente do lado de fora da funerária, o São Bento perdia em casa do Mogi e ficava mais longe do acesso na fase final da Série A-2.)

Não perdi tempo com o São Caetano nas quartas, mas, nas semifinais, tive o prazer de conhecer um pouco mais a fundo as agruras de ser botafoguense.

Na primeira partida da final, brigas com Dona Camila não por causa do “Roja Directa”, mas porque estávamos comendo numa pizzaria fuleira perto de casa e, enquanto ela falava algo tão importante que já esqueci, me virei para ver alguma jogada de perigo. No jogo de volta, na mesma pizzaria, o prazer de secar discretamente se multiplicou quando ela passou a ver o jogo para acompanhar o “seu” Timão (torcedora de meia-tigela, ela é daquelas que mal consegue enumerar mais que cinco jogadores, e seu apreço de ocasião cresceu exponencialmente com a chegada do Gordo), e foi duro segurar a alegria pelos gols que deram o título a CHICO CESAR e seus asseclas. Após o fim do jogo, tantos rojões que parecia estarmos no Recife. Alegria, alegria.

2 – Corinthians 0 (4) x 0 (3) Vasco, 14/01/2000, final do Mundial de Clubes

Eu tinha acabado de terminar a faculdade e estava começando em meu primeiro emprego em São Paulo, com um chefe também palmeirense, mas nossa secagem conjunta nas partidas anteriores não havia sido bem sucedida, e a prova cabal era a própria presença do Corinthians na final.

(No último jogo da primeira fase, o adversário deles fora o Al Nasser, que jogava com camisas amarelas e calções azuis e tinha um atacante baixinho jogando com a 11. Passamos o jogo inteiro aos gritos de “Vai, Romário!”, sem o menor sucesso.)

De modos que na sexta-feira, dia da final, enquanto meu colega de república, corintiano, dava seus pulos e conseguia ingresso e transporte para ir ao jogo, eu resolvi ir embora para Sorocaba. Sequei à meia-bomba no caminho, já que a sintonia de AM do meu WALKMAN era péssima e eu malemá conseguia escutar os chiados.

Cheguei a Sorocaba já nos minutos finais do prélio, meu pai me pegou na rodoviária e ainda peguei o segundo tempo da inútil e modorrenta prorrogação. A presença de Dida debaixo das traves não era dos melhores presságios para os pênaltis, mas a esperança é a última que morre, não dizem?

Bom, a minha foi para a UTI com o pênalti ridiculamente perdido por Gilberto (“Imbecil, vai chutar bunda de vaca!”), voltou a respirar por aparelhos com o erro do execrável Marcelinho, e bateu definitivamente as botas (anota essa, Prestes) com o Animal. E tivemos de engolir o rival com o título mundial que tínhamos perdido mês e meio antes.

1 – Grêmio 1 x 1 Corinthians – 02/12/2007 – última rodada do Campeonato Brasileiro

Gato escaldado que sou, e com uma experiência de rebaixamento nas costas, hesitei até o último segundo em acreditar que o Corinthians seria, sim, rebaixado para a Série B. Afinal de contas, a tabela não era das mais fáceis, e eles chegaram à última rodada fora da zona de rebaixamento, ao contrário do que tinha acontecido com o Palmeiras cinco anos antes.

Era, no entanto, uma situação complexa, o inferno de todo secador em tempos de pontos corridos: ter de dividir a torcida contra seu mais ferrenho rival com a atuação do seu próprio time – no caso, o Palmeiras do destemido Caio Júnior recebia o Atlético-MG e precisava de uma vitória simples para carimbar seu passaporte na gloriosa Libertadores. Na redação, com apenas uma TV, sintonizamos na Globo para acompanhar os demais resultados pela nefasta bolinha. E mal deu tempo de começar a secação quando JONAS guardou o primeiro gol do Grêmio. Metade da missão parecia cumprida, ainda que o inacreditável Clodoaldo tenha marcado o gol de empate e, logo em seguida, no Palestra, Eder Luis fazia 1 a 0 para o Galo. Edmundo empatou em seguida, é verdade, e por um bom tempo os placares pararam de se movimentar, para desespero deste torcedor-secador.

Do lado verde, entreguei os pontos depois que Marinho fez 2 a 1 para o Atlético, e logo em seguida Danilinho marcou o terceiro. A partir dali, todo o Palestra se desinteressou do jogo e pôs os ouvidos no radinho para, apenas secar. Quando o apito de Alício Pena Júnior soou em Porto Alegre, explodi de alegria: meu time havia perdido, mas a missão de secador, minha e de todos os que estão neste vídeo, estava cumprida. Amém.

*Nome do bairro onde fica de fato o estádio do Morumbi, leva o nome da mulher do ex-governador Adhemar de Barros, um dos “heróis” da construção do outrora maior estádio “particular” do mundo.

** Como todos sabem, o Santos também é alvinegro, mas, Domingadas à parte, não tem quase rivalidade conosco, a ponto de poucas vezes eu tê-lo secado. Aliás, ele é até o beneficiado nas faixas-bônus:

6 – Corinthians 2 x 1 Santos – 13/05/2001 – semifinais do Paulistão

Dia das mães, toda a família reunida para celebrar a data e também meu aniversário, vou vendo o jogo preguiçosamente e curtindo o fim do almoço, com absoluta certeza de que é inútil secar se o favorecido é o Santos, ainda que sempre nos reste a esperança.

Até que, surpreso, começo a pensar que, oras, parece que vai dar certo a secada meia-boca. Lá pelos 44 minutos do segundo tempo, solto a estocada fatal: “Puxa vida, não acredito que o Santos vai mesmo classificar. Não é possível”. De fato, não era mesmo.

7 – Corinthians 2 x 3 Santos – 15/12/2002 – final do Brasileiro

Eu já tinha dado uma forcinha para o Santos nas quartas de final, levando meu irmão são-paulino para uma nefasta estréia no Morumbi. E seria castigo demais, no ano em que éramos rebaixados, ver o Corinthians ser campeão de tudo – lembremos que eles já haviam vencido a Copa do Brasil e o Rio-São Paulo.

Logo, na final eu era Santos desde criancinha, colocando todas as minhas esperanças nos pés de Diego e do lamentável ROBINHO. No segundo jogo, eu estava de plantão ao lado de dois santistas: um já cinquentão, viúva do Rei, e outro com menos de 30, que já nem sabia mais como se soletrava a palavra campeão. O mais velho assistiu impávido ao jogo, mexendo no máximo as SOBRANCELHAS com as pedaladas e o gol de Robinho, e depois, no segundo tempo, a virada corintiana. Enquanto isso, o mais jovem foi do delírio ao transtorno, e eu podia sentir, a metros de distância, sua pressão arterial saltar para 34 x 25.

Nos últimos minutos, nem eu resisti a tamanha tensão e me levantei. E foi em pé, ao lado do meu colega contemporâneo, que vi Robinho escapar pela direita e deixar Elano na cara do gol, pronto para marcar o empate santista. O tiozinho, pela primeira vez naquela tarde, vibrou; e o outro rapaz me deu o abraço mais PUNGENTE que eu receberia em muitos e muitos anos, um misto de alívio e alegria, típico de quem acabava de tirar um PIANO DE CAUDA de cima das costas. Fiquei feliz por ter dado minha contribuição.

Aqui, os momentos decisivos da peleja.

Secadas oferecidas por Fernando Cesarotti, pai do Davi.