Como surgiu o homem que gosta de futebol

Ontem estava eu na fila do supermercado e uma velhinha me abordou. Sabia que aquela camiseta laranja era do Impedimento, o seu site preferido, ao lado do Mais Você e do Kibe Loco. Estava muito curiosa, ela, para saber como surgiu esse tal homem que gostava de futebol.

A princípio, nada de muito estranho. Tinha gosto pela bola e jogava como todos os outros. Tinha seus ídolos, o maior deles era o Toninho Cerezo. Pelo futebol, mas principalmente pelo bigode, pois um dia sonhava ser um homem adulto de bigode. As famílias dos pais torciam para a dupla grenal, mas ele mal conheceu os pais. O pai morreu cedo, a mãe tinha problemas psiquiátricos. Foi criado pelos avós,  paulistas radicados em São Leopoldo. O avô era santista. O tio torcia para o Aimoré.

É claro que o tio começou a levá-lo no estádio. Tinha que criar vínculo com ele de alguma forma, afinal. Era criança quando ele nasceu, pouco mais que um adolescente quando ele se criou. O homem que gostava de futebol foi no seu primeiro jogo do Aimoré aos sete anos, era um amistoso contra o Pratense. Primeiro jogo da vida, aliás.

A velhinha se impressionou. “Como assim, alguém vai ver Aimoré X Pratense e ainda sai gostando da coisa?” Pois é. Só que não foi pela cultura, pela tosqueira, por essas coisas que eu, tu e a velhinha gostamos de ler aqui no Impedimento. Foi pelo centromédio, um camisa 5 chamado Moisés.

O Moisés era empregado numa fábrica de sapatos. Era um careca, alto, de bigode. Quase um Toninho Cerezo. Sempre encontrava o Moisés na padaria, comprando de sete a dez cacetinhos para alimentar seus quatro filhos. Tinha uma admiração pela figura do Moisés, mesmo sem saber que jogava futebol. Descobriu essa sua versão naquele sábado de manhã, quando entrou ele vestindo azul e branco para defrontar o Pratense.

O público do jogo era umas 12 pessoas. Velhinhos desocupados, parentes, adolescentes como o seu tio e ele, que ficava vendo o jogo. O tio, lá pelas tantas, ia para trás das arquibancadas e pedia para que ele não fosse. Estava acompanhado de uns dois guris da mesma idade, que também andavam de bicicleta. Geralmente voltavam tossindo e com um cheiro estranho, que parecia uma fumaça adocicada. Nunca entendeu.

Quase sempre comentavam sobre alguma guriazinha, alguma festa, e riam muito, aquilo parecia muito engraçado. Enquanto isso, ele ficava ali, vendo o jogo. Começou a se aborrecer com a história. Ele jogava melhor do que muita gente ali. Por que não convidavam ele para dar uns chutes na bola? Do lateral direito ele ganhava na corrida certo.

Até que o Moisés pegou uma bola e ergueu a cabeça. Aquilo chamou atenção, porque era a primeira bola que o Moisés pegava com espaço e logo, levantou a cabeça, o queixo, mirando o espaço longe. O sol que aparecia entre as nuvens, talvez. Deu um passo, dois. Em seguida, emendou um passe de letra. Alto, longo, um balão, que morreu no peito do ponta-esquerda, com os braços baixos, para cair rente ao pé. Talvez entendendo a beleza do lance, o ponta-esquerda driblou dois ou três em direção ao gol e deu o passe para trás. Chegava o mesmo Moisés, que parecia ter atravessado o campo inteiro para aparecer ali. Olhando fixo para o gol, chutou de primeira no ângulo. 1×0 Aimoré. Ele comemorou. Pulou, gritou. Uns seis parentes e as três crianças que brincavam de gandulas também. O seu tio e os amigos riram. O gol lhes parecia muito engraçado.

Aquele primeiro gol, contei à velhinha, impressionou demais o homem que gostava de futebol. Mesmo com a tenra idade, pouco mais de 10 anos, ele sabia que um grande lance poderia ser poesia em qualquer situação, até mesmo num Aimoré X Pratense sábado de manhã com quase ninguém na arquibancada. Porém, não foi só isso, expliquei à velhinha. O que houve, então?

Na saída de campo, o homem, então um piá, foi até o campo por um dos buracos do alambrado. Pegou um dos capotões vazios que sobraram do jogo e posicionou-se na lateral direita. Queria reproduzir o lance. Tentou uma, duas, três vezes. Até ouvir uma voz:

“Quer que eu te ensine?”

Era Moisés.

“Pega essa aqui, que tá cheia.”

Ali ficaram, Moisés e ele, dando lançamentos de trivela para a ponta esquerda até o cair da tarde. A partir dali, o piá começou a gostar de futebol.

A velhinha acabou saindo com seu ramo de alface e seu pacote de maizena antes de eu lhe explicar que logo depois, o Aimoré acabou, o que impediria ele de torcer para o clube leopoldense. Acho, porém, que ela entendeu a coisa. Parece que o Aimoré joga nesse fim de semana, acho que o homem que gosta de futebol vai estar lá.

Luís Felipe dos Santos