Casa estranha, a duas mil léguas da minha (Parte I)
10/05/2011 at 06:00 iurimuller 37 comentários
“Na noite de véspera de sua partida, ele ficou na cama e sentiu aquele estranho sentimento confuso que os rapazes têm quando estão prestes a partir de casa pela primeira vez, aquele medo sonolento de deixar a cama, o quarto, a casa que sempre foi a primeira base confortável da vida antes de qualquer outra coisa, a casa que é tão familiar e simples quanto um suéter velho, para a qual sempre se retorna depois de excitações e exaustões para dormir tranquilamente: e ao mesmo tempo ele sentia aquele ânimo estonteante para sair de casa – ir para estações de trem, balcões de cafeterias, cidades novas, fumaça e agitação e cheiros de vento novos e estranhos, para vistas inimagináveis repentinas de rio, estrada, ponte e horizonte, tudo sensacionalmente estranho sob céus desconhecidos”. (Jack Kerouac – Cidade pequena, cidade grande)
Nesta cama que não é minha não há conforto. O colchão é coberto pelo tecido surrado, puxado por elásticos nas extremidades. Os lençóis, dobrados, são colocados na cadeira próxima. Ou sobre a escrivaninha. Ninguém, na exaustão de trinta e três horas de viagem, quis arrumá-los. No máximo, se joga o cobertor felpudo, tosco e gasto, sobre o corpo. A noite anterior à saída parece estar a uma distância ainda maior do que os milhares de quilômetros que nos separam a todos de casa enquanto Bruno Ruppel tenta pegar no sono. Lá longe, no lar, ainda mostram com orgulho a edição de domingo de Páscoa do principal jornal do Estado. Na página trinta e cinco, Caderno de Esportes, uma foto sua ilustra a matéria sobre a excursão. O São Luiz estava de partida para a França, para um Mundial Sub-15, numa manhã fresca em que as malas do grupo sufocavam os corredores do estádio em Ijuí, antes de serem depositadas no bagageiro da história.
Agora Bruno sofre. Ele será um dos muitos garotos incomodados com algo nos dias dos jogos pelo torneio, e antes de cada confronto tentará reduzir o inesperado aperto das chuteiras encharcando-as com água, mas sob o anil escuro da primeira noite europeia seu problema não é singular – quer, apenas e como os demais, dormir. No ambiente hostil e totalitário de um internato, a quatrocentos quilômetros de Paris e a meio mundo da cama que é verdadeiramente sua, não é fácil. Seu horário diz que são sete e meia da noite. Mas é meia-noite e meia, na França. E as regras do alojamento, que poucos conseguiram ler no idioma local, cravavam nos quadros de cortiça uma descoberta – em diversos sentidos, sofrer é mais comum que sonhar. Dali a seis horas, as luzes do dormitório seriam automaticamente acesas. Pontualmente às sete da manhã, a abertura mecânica das persianas descerraria também os últimos olhos teimosamente fechados.
Os internos regulares são ainda proibidos de usar celulares após às nove da noite, impedidos de acessar os computadores para fins não-escolares e só têm direito a uma noite coletiva de televisão por semana, em canal definido por votação – geralmente uma unanimidade em torno da emissora que reproduz as séries estadunidenses. Essas regras não se aplicam aos visitantes, os times do São Luiz e do Longueuil, do Canadá, que ocupam os quartos nessa semana de recesso de aulas, mas há sabor de rotina nos corredores do grande colégio à beira do Rio Loire, na cidade de Nantes. Metidos em seus abrigos vermelhos e sem conseguir completar uma hora de sono, os são-luizenses despertam zumbis. Estão a pouco mais de um dia de estrear na competição. Superaram o susto da viagem de avião – a primeira das vidas de todos os dezesseis jogadores –, mas agora são uma tropa de mal dormidos e, como suspeitam na frugalidade de um café da manhã com iogurte natural pouco açucarado, em breve estarão também mal alimentados.
Não há diálogo com o Longueuil no refeitório, meninos separados pelo alto muro dos idiomas distintos, mas a terça-feira de passeios para conhecer a região começará a unir as equipes de extremos opostos da América. Os canadenses, ou quebequenses, respeitando a preferência separatista da região de onde saíram, são treinados por um brasileiro. Jackson Andrade é curitibano, acompanhou a esposa numa jornada de estudos, embrenhou-se pelo futebol nortista e assumiu o comando da equipe. Constata rapidamente que cinquenta por cento da preparação feita pelo time do Rio Grande do Sul deve ter se perdido no pouco tempo que separa o ter estado nas nuvens e nas estradas do iminente estar sobre os gramados sintéticos onde serão feitos oito jogos em quatro dias. Na praia de La Baule, a cinquenta quilômetros de Nantes, o time norte-americano corre descalço na areia, derrama suor no litoral do Atlântico Norte. Os ijuienses ainda sentem a poltrona do Airbus no corpo e temem ficar aos pedaços. Tiram fotos e só. Não conseguirão treinar uma vez em solo francês.
O maior pique é para se juntar ao redor da câmera fotográfica que conseguiu flagrar uma loura de topless. Nisto, brasileiros e canadenses são iguais, com todas as multiplicações de vontade sacana que os quinze anos de idade provocam. Para os gaúchos decepcionados com a culinária francesa e condenados a forrar seus estômagos de batatas fritas, o retrato é a imagem mais carnívora que o Velho Mundo vai deixar. Rapidamente, caem as ressalvas quanto aos atletas profissionais que acusam falta de adaptação por não terem encontrado feijão nos hipermercados europeus. A comida diferente prejudica o rendimento, facilita as câimbras. O restaurante universitário local é colocado à disposição dos participantes. Mais batata frita. A lasanha vegetariana de aspecto desagradável. Uma trouxinha de papel laminado com qualquer coisa de origem duvidosa dentro, exalando um odor forte que leva à religiosidade – oração e jejum.
Divididos em duplas na segunda noite e distribuídos nas casas de famílias que se inscreveram para receber os jogadores estrangeiros, os são-luizenses se inserem definitivamente no cotidiano gaulês. A adaptação ao fuso horário evolui, mas as camas continuam não sendo as deles. Bruno acorda na quarta-feira, dia de estreia, como se tivesse levado uma pancada na cabeça. Literalmente. No segundo andar de um beliche, realidade nova, despertou de impulso e acertou a testa no teto baixo. Noutra casa, o falante meia Rodrigo Dalla Roza é apresentado a um desalentador café preto com pão para iniciar a jornada. O também meia Mossoró, ainda sem vestir a camisa 10 dentro da qual será apontado pelos observadores como aquele com mais jeito de jogador, recebe um “Bonjour” do caçula da família que o acolhe. “E aí, bruxo?”, responde. Todos sofrem com o idioma. Mossoró mais. Ele é um dos integrantes do time que saíram de Júlio de Castilhos e, por não poderem ir a Ijuí, ficaram sem aula alguma de francês.
Samuel Schwederke, que frequentou as classes de língua, confundiu-se com referências trocadas, mas não tanto de léxico ou gramática. O volante de tranças modestas foi o primeiro a experimentar o sabor de perder na Europa. Levou sete do seu anfitrião, no futebol do videogame. Até os controles parecem invertidos, e a impressão de que as direções não estão bem definidas a milhas do lar é reforçada pelo motorista belga que vezenquando leva o ônibus da delegação pelas ruas de Nantes – e precisa ser guiado até a cancha com gritos histéricos de “à gauche” e “à droite”, ou periga até cair no rio. O futebol real seria caótico assim, também? Daniel Dürks, o técnico, tenta mostrar que não, não há monstros lá no fim dos mares. No apertado vestiário do Estádio de l’Eraudière, um dos campos de jogo do torneio, ele conduz os ânimos de seus comandados com destreza, muito diferente do barbeiro de Bruxelas e sua máquina. Daniel lembra o esforço para chegar à França, o trabalho dos pais como copeiros para viabilizar a viagem, e pede uma tijolada nos dentes de quem sorria com desdém para a fé dedicada ao sonho mundialista. Há que superar as dificuldades e calar os secadores.
Cita Nietzsche e convida os jogadores a subirem ao campo – dançar diante do abismo de seus medos. O São Luiz vence por três a zero. Esnoba a altura, rodopia as chuteiras e faz as pedrinhas despencarem no fundo do penhasco, no seu primeiro jogo europeu de todos os tempos, contra um clube de nome bastante apropriado para a metáfora do treinador – o La Roche. A dez mil quilômetros de Nantes, uma mãe, um pai, um irmão ou uma prima cheios de saudades trêmulas acompanham extáticos as notícias que lentamente começam a se difundir nas rádios. Aquele bando de guris esperançosos, vistos de fora com desconfiança reticente, ganham destaque. Três a zero num jogo de somente vinte e seis minutos, tempo definido pelo regulamento. Há mais atenção para os passos seguintes da equipe. Enquanto espera o ônibus tonitruante do belga para mudar de cancha, Samuel questiona humilde, como Garrincha já fizera em alguma Copa do Mundo: “Daniel, contra quem mesmo nós vencemos?”
Maurício Brum
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1. Marimon | 10/05/2011 às 06:24
Foda.
2. Juan Carlos "Chango" Cardenas | 10/05/2011 às 08:39
Gurizada copera y peleadora.
Grande texto chê!
3. fabio | 10/05/2011 às 08:44
QUE TEXTO! QUE VIAGEM! Parabéns Brum, no aguardo dos próximos capítulos.
4. Alexandre N. | 10/05/2011 às 09:15
PUTAQUEPARIUAMÃEVESGADOGUARDAMANCO!
Mais uma vez, mais um texto genial. O Impedimento é o maior celeiro de craques das linhas esportivas.
E pensar que muitas situações parecidas acontecem no país inteiro. E quase ninguém sabe…
5. Eduardo | 10/05/2011 às 09:31
Foda (178).
6. Carlos | 10/05/2011 às 09:34
DA MASSA!
7. Guto | 10/05/2011 às 09:39
Lágrimas masculinas brotam em minha face.
8. Tiago Marcon | 10/05/2011 às 09:48
Tonitruante relato! baita texto
e um treinador que cita Nietzsche hein
9. Dario B. Bestetti | 10/05/2011 às 09:51
Sensacional o texto e o desempenho da piazada de Ijuí !
10. Vinicius | 10/05/2011 às 09:52
Samuel questiona humilde, como Garrincha já fizera em alguma Copa do Mundo: “Daniel, contra quem mesmo nós vencemos?”
muito bom!!!
(adendo, rafa marques e borges OFERECIDOS ao Inter, estão fora do Grêmio)
11. Fernando - Mafia do Apito | 10/05/2011 às 10:14
Baita texto…
Fernando – Máfia do Apito
http://www.mafiadoapito.com.br
http://twitter.com/mafiadoapito
12. Sancho | 10/05/2011 às 10:27
Adaptação não é fácil. Minha cunhada mora na França (em Nord-Pas-de-Calais, para quem não sabe recomendo o filme “A Riviera não é aqui”), foi com uma delegação que trabalha numa multinacional. Apesar de adultos, com curso preparatório dado pela empresa, a maioria dos brasileiros se relacionam entre si para não sofrer de banzo. Imagina a gurizada! O texto se parece com o relato da irmã da minha esposa (ela e o marido, aliás, ao contrário doutros, estão bem enturmados com os locais).
13. Sancho | 10/05/2011 às 10:28
Pelo texto, parecia que a gurizada ia tomar ferro em todos os jogos. De repente, um 3-0 na estréia. Era pegadinha do Brum!
14. Roger | 10/05/2011 às 10:31
Bah, tenho que me lembrar de não ler os textos dessa série aqui no trabalho pra não ficar chorando depois…
Parabéns Maurício!
15. Fernando Cesarotti | 10/05/2011 às 10:43
Grande Brum, sabe tudo das letras. Aguante São Luiz, aguante grande reportagem!
(Dá pra sair um livro dessa história, fácil. No mínimo uma matéria na revista da ESPN, Ceco e Santi podem dar o caminho das pedras)
16. Kadj Oman | 10/05/2011 às 10:53
Que texto brilhante. Me lembrou da ida do Autônomos FC à Inglaterra ano passado.
Cacete, fiquei arrepiado aqui.
17. Mandioca | 10/05/2011 às 10:54
O #16 sou eu.
18. Eduardo | 10/05/2011 às 12:17
Pergunta importante para o CARÁTER dos guris…
Fizeram DANCINHAS em algum tento?????
19. Paul | 10/05/2011 às 12:36
Que ducaralho.
20. Frank | 10/05/2011 às 13:02
Belo texto sobre a excursão da gurizada de Ijuí, ainda mais que é iniciado com uma citação do Kerouac… Muito bacana…
OFF:
Eu achava MESMO que o Chivas-MEX era uma homenagem ao uísque… doce ilusão…
http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2011/05/10/herois-animais-e-ate-termo-em-ingles-veja-nomes-curiosos-de-clubes-da-america-latina.jhtm
21. rosa maria | 10/05/2011 às 13:10
Que viageemmm….LINDO texto linda historia para os garotos
do Sao Luis.Parabéns Mauricio
22. Leonardo | 10/05/2011 às 13:15
FODA DEMAIS
Força pra gurizada que tá lá representando…
23. arbo | 10/05/2011 às 13:20
dá-lhe, gurizada!
24. dante | 10/05/2011 às 13:24
parabéns, maurício, EXCELENTE texto!
e um grande abraço da família impedimentense aos guris de ijuí!
25. Elen | 10/05/2011 às 13:52
Grannnnnde Mauricio…Ler o que vc escreve sobre nossos meninos e esta belissima viagem, me faz estar lá, mesmo sem ter ido á Nantes.
Todos os seus textos realmente são maravilhosos, até então não havia lido nada, de um jornalista esportivo, semelhande ao que vc escreve. Parabéns, Você e sua família cariram do céu para nós…
26. Francisco Luz | 10/05/2011 às 14:14
Brilhante.
27. Norteña | 10/05/2011 às 14:52
Bah chorei aqui no escritório. Agora vou ao banheiro enchugar as lágrimas…
28. Kadu | 10/05/2011 às 15:51
Parabéns pela reportagem e por citar Kerouac. Infelizmente o resultado não foi surpresa pra mim, já tinha lido a matéria sobre o campeonato no Olheiros… no aguardo do resto da série!
29. Lucio | 10/05/2011 às 16:59
Rapaz, que baita texto.
30. Prestes | 10/05/2011 às 17:01
Genial! E o melhor de tudo é que o melhor desta série ainda está por vir!
31. diosandri | 10/05/2011 às 17:56
Que baita texto!
Mas essa frescura adolescente de reclamar de comida é falta de laço.
Kkkkkkkkkk.
32. Vinicius | 10/05/2011 às 19:13
é cada nome de time!! Once Tigres, Jorge Gibson Brown, Dep. Pronunciamiento, Villa Cubas, Colon Juniors, Sportivo Peñarol..
É o ascenso do interior da argentina.
http://www.ole.com.ar/futbol-ascenso/Globo-helio-cuyano_0_478152411.html
http://www.ascensodelinterior.com.ar/portal/index.php/tdi.html
33. matheus furtado | 10/05/2011 às 21:58
que baita texto, hein
34. Eduardo | 10/05/2011 às 22:10
Ceconello e suas contratações PONTUAIS.
Impedcorp RULES!!!
35. mafama | 11/05/2011 às 02:58
muito bão mesmo.
nem chorei nada (mentira)
36. Marcelus Vieira | 12/05/2011 às 12:49
Maurício, grande texto, certamente teremos o prazer de no futuro ler muitos textos seus, narrativas memoráveis.
37. Godo | 19/05/2011 às 18:05
Impedimento, salva de palmas.