Humano, demasiado humano

Talvez, e apenas talvez, o grande algoz de Ronaldinho seja a própria imagem que se construiu sobre ele. Talvez Ronaldo seja, sim, um fora-de-série, mas não o jogador que imaginemos. Sim, será difícil deixar minha tese clara, mas, afinal, tentarei.

Coisa semelhante se passou com o Rubinho Barrichello ali pelos anos 90, quando o rapaz era uma jovem promessa. Barrichello – pra quem acompanhou sua aparição ali no final dos anos 80 e início dos 90 – era um piloto ousado, arrojado. Chegou a ser apadrinhado e empresariado por Nelson Piquet e logo que chegou no F-1, se tornou protegido de Senna. Senna morreu e a mídia jogou nos ombros de um muito jovem Rubens a tarefa de ser um novo Senna. É óbvio que deu errado.

Não é que Barrichello seja um pé-de-boi, mas ele simplesmente não era um eleito. Barrichello ainda teve o azar de ser contemporâneo de Schumacher, o verdadeiro CÃO dentro de um automóvel. Somemos as projeções que Barrichello nos “frustrou” com as vitórias e títulos e glórias que o alemão (companheiro de equipe do brasileiro justamente em seus melhores anos) conquistou e temos a desgraça: Barrichello, em geral, é visto como um sujeito menor, que nada conquistou.

A imagem que temos de Ronaldinho é de um jogador capaz de misérias, mas com uma cabecinha de miserável. Em suas costas a maioria dos torcedores deposita o fracasso da Copa de 2006, porque na hora que o tempo fechou, o camisa 10 sumiu. Em geral, o reforço para este argumento é lembrar que o Barcelona, com Ronaldinho em campo, perdeu a decisão do Mundial no Japão para o Inter em 2006. O dentuço estava, então, gastando a bola como poucas vezes havíamos sido capazes de ver.

Aqui perto da banda do Rio da Prata, há um senhor detalhe a ilustrar a biografia de Ronaldo de Assis Moreira: seu surgimento meteórico e a posterior saída do Grêmio, que ocorreu de forma traumática. Se, por um lado, qualquer gremista que se preza derrama lágrimas só de lembrar de suas atuações nas finais do Gauchão de 99, poucos tricolores gostam de lembrar os pormenores de sua saída do clube. Ronaldinho, então, já era, para efeitos morais, o jogador a ser acompanhado por todos. Um ano mais tarde, em 2002, ele teria uma participação notável na conquista do penta, ao lado de Rivaldo, Ronaldo e, pasmem, Kléberson.

Ronaldinho largou o status de revelação para assumir a camisa 10 de Seleção Brasileira que havia engatado uma sequência de 3 finais de Copa do Mundo seguidas, vencendo duas. Ronaldinho virou jogador do Barcelona – que precisava enfrentar os GALÁTICOS do Real Madrid. Ronaldinho, ao lado de Samuel Eto’o, comandou o esquadrão que levou o Barça ao bicampeonato europeu (2005/06), além de tomar do Real a supremacia no campeonato espanhol nas temporadas de 2004/05 e 2005/06.

Ronaldinho foi eleito melhor jogador do mundo nas duas temporadas e a comparação com Maradona e Pelé tornava-se cada vez mais comum. O Barcelona atingiu a marca de 125 mil sócios vendendo a imagem do jogador que lotava o Camp Nou a cada atuação.

E veio então a Copa das Confederações, em 2005 – um torneio para promover o Mundial que seria jogado no ano de 2006 na Alemanha. Ronaldinho, no topo, ao lado de Kaká, Robinho e Adriano massacraram (e não há outro verbo possível) a Argentina na final com um 4×1 impiedoso. Deste jogo até o início da Copa de 2006 pouquíssimos torcedores e cronistas ousaram dizer que, reforçados de Ronaldo, esse time não seria campeão na Alemanha. Erramos todos, erramos muito.

Ronaldinho não havia sido o primeiro (e nem seria o último) grande craque a decepcionar no Mundial. Os videoteipes e closes em câmera lenta que o consagraram se voltaram para suas falhas, seus tombos, seus passes errados. Aqui se faz, aqui se paga. Quase ninguém veio a público lamentar que ele tenha jogado aquilo que jogou em 2005/06 pra chegar na Copa e encontrar o time mais imprestável que poderia haver, com os dois atacantes (Ronaldo e Adriano) pesados feito elefantes e dois técnicos com cérebro de cavalo manco. Era praquele trio ter feito MISÉRIAS na Alemanha, mesmo com RC e Cafu nas PICKUPS.

A cereja do bolo foi servida no Japão, em dezembro do mesmo ano. O timaço do Barça caiu diante do Colorado e a voz corrente era que, Ronaldinho, outra vez, havia fracassado. No ataque do Barça, naausência de Eto’o, figurava um ISLANDÊS chamado Gudjohnsen, especialista em receber as bolas de seu camisa 10 e desperdiçá-las todas, com requintes de crueldade. Um Ronaldinho só contra 11 não faz verão, ora pois.

Ronaldinho não foi o grande jogador de sua era. Esse grande jogador foi Ronaldo, o Primeiro, maior artilheiro das Copas. Ronaldinho é um jogador de primeiro time, ainda que não seja o Pelé ou o Maradona que nele teimamos em procurar. Talvez queiramos de seu futebol respostas metafísicas demais.

Talvez nós todos, de algum modo, tenhamos a miopia de querer que nossos craques resolvam os problemas do nosso futebol como se livram de zagueiros e volantes, com um drible de corpo ou um truque de olhar. Daí o ressentimento quando esses jogadores assinem contratos milionários e se mandam pra qualquer Ucrânia que apareça – como se nós mesmos, médicos, engenheiros e publicitários não fizéssemos a mesmíssima coisa quando possível.

No caso de Ronaldinho, há um particular. Caçula de Assis, que jogou no Grêmio e depois na Europa, Ronaldinho já era pauta nas redações esportivas antes mesmo de se tornar jogador profissional por conta do irmão maior. O irmão mais velho encerrou a carreira pouco após entrar na casa dos trinta para gerenciar os contratos do mais novo. Ronaldo nunca perde uma oportunidade de frisar que seu irmão lhe serviu como anteparo nas negociações contratuais – os dois sabem o quanto vale o futebol de Ronaldinho e lutam para que esse valor não se perca nas mãos de cartolas e semelhantes.

Essa pendenga em torno da provável volta de Ronaldinho ao futebol brasileiro só deixa claro que, enquanto o jogador negocia seu valor de forma profissional, nossos dirigentes continuam operando de forma amadora – ou mafiosa. Ronaldinho tem todo o direito de cobrar o seu preço. Não é sua culpa que os clubes que o almejam não tenham feito por onde nesses últimos 10 anos em que ele esteve na Europa para se valorizarem. A função de Assis é justamente essa: valorizar Ronaldinho e negociar para seu atleta os melhores contratos que puder.

Ronaldinho, capaz de misérias em campo, tem todo o direito de negociar para si o melhor contrato que pretender. O resto de nós precisa aprender a melhorar o futebol através da presença dele em campo. Ele é apenas um homem que gosta de jogar bola e que aprendeu a ganhar bastante dinheiro assim.

Leandro Godinho