A tarde dos escolhidos

O maior privilégio possível na vida de qualquer andarilho de botecos é poder assistir ao jogo num bar fechado. Não figurativamente fechado por mim, claro, que mal tenho ferro pra pagar minha própria CONSUMAÇÃO, mas pelo dono do bar, que no intervalo cerrou as cortinas metálicas e se colocou a entornar metros cúbicos do musgo doirado que AÇAMBARCA nossas almas inúteis nesses domingos CHUMBADOS de Porto Alegre.

Acabei caminhando mais unsa trinta metros e parando em outra casa já célebre da região, porque uma inusitada televisão desligada deixava um clima de desolação no bar que fica apenas uns trinta passos da minha cama, um troço sem qualquer firula e que se apresenta na fachada como pertencente ao Sindicato da Puta que Pariu a Nosotros Todos, ou qualquer coisa assim. Fica ao lado da delegacia, que obviamente nada faz quando arrombam apartamentos e carros na mesma medida em que tetas são lambidas nos becos.

Minha intenção, já passadas as quatro da tarde, era encontrar Dom Afonso, colorado da época dos mandarins, cujo principal hobby é permanecer numa mesa com uma garrafa de dois litros de Guaraná e uma maço de HILTON, devidamente definhado ao longo da jornada. Aquele notório senhor de 80 anos é um inigualável parceiro na arte de ver futebol e conta histórias com a lábia precisa dos poetas concretistas. Um gênio do bairro, que anda com seu corpanzil encurvado, tamanho é o peso dos causos que ainda não foram contados.

MALOGREI. Dom Affonso não estava. Almoçou aqui e saiu, disse O Proprietário do estabelecimento. Não me surpreendi, aquele é um recinto tradicionalmente gremista e eu mesmo vi só uns dois ou três jogos por ali. Dessa forma, quando entrei, éramos três resistentes e O Proprietário, uma criatura cuja bondade no coração se mede na hora do almoço: muitas vezes, quando se escolhe a opção BUFFET, que não envolve o MINI-ESPETO (variedade de espeto corrido que traz tudo que importa, menos a dispensável picanha, ovelha, CORDORNA e outras excentricidades), ele aparece com um BRAÇO DE SOFÁ de vazio assado, apenas como cortesia. Choro sal grosso sempre.

Mas DERIVO. Fato é que estávamos lá, aquela plateia de menos de um punhado, sofrendo, com O Proprietário, gremista de quatro costados, gargalhando enquanto mamava seu CHANTILY e via Glaydson apoiar com a desenvoltura de um cachorro atropelado: “Que pelada! Que pelada!”.

Foi no intervalo que ele abaixou uma das cortinas e deixou a outra pela metade. Me senti membro de uma congregação por demais sofisticada, da qual fazem parte aqueles clientes que obtêm o direito de beber dentro de um bar cujas portas seladas repelem o resto da humanidade. São aqueles felizardos que nos causam inveja quando passamos tarde da noite pela calçada, sedentos e com os olhos espetados, e só ouvimos as gargalhadas e os palavrões ecoando sua pertinência atrás das lâminas de metal.

Não tinha começado o segundo tempo quando parou um táxi no meio-fio. O Baixinho olhou e anunciou: “Lá vem aquele magrinho de óculos, que sempre fica ali na frente”. O Proprietário, impiedoso, setenciou: “É um cara legal. Pena que está se MATANDO”. O novo cliente, doravante chamado de MAGRINHO, ignorou o aviso de “Fechado” e entrou no bar, tropicando as pernas tísicas e perceptivelmente TRÊMULAS,  o que me fez parar e pensar em coisas relacionadas ao FUTURO. Cumprimentou O Proprietário de forma protocolar e foi direto pra caixa de gelo. Apanhou umas duas pedras, caprichou na vocdca e sentou numa mesa, bem em frente à televisão. Esse é membro vitalício, pensei, o que não quer dizer que o será por muito tempo.

E dessa forma nós, três reis do mais baixo escalão social porto-alegrense,  mais um agregado de última hora, todos sob a batuta de O Proprietário, velamos Jorge Fossati, passando quase incólumes à inesperada goleada sobre o Atlético-PR,  um evento de importância secundária para quem pôde ver a tarde se esvair de um ângulo tão inatingível para a maioria dos mortais, as frestas de um bar fechado.

Saudações,
Douglas Ceconello.